Durante entrevista ao Programa Perspectiva, da TV e Rádio da Assembleia Legislativa, apresentado pela jornalista Lívia Machado, o presidente do IDAMS (Instituto de Direito Administrativo de Mato Grosso do Sul), João Paulo Lacerda da Silva, detalhou como os gestores públicos devem “administrar” os recursos em tempos de pandemia do novo coronavírus (Covid-19). “Há um certo folclore em relação às compras e aquisições governamentais, seja pela União, Estados e municípios. Foi editada uma Medida Provisória (MP) tratando especificamente acerca das compras governamentais sem licitações e essa MP versa sobre compras e aquisições de serviços e insumos para o combate e prevenção da Covid-19). Não se está dando um cheque em branco, por meio dessa MP, para o gestor público gastar os recursos que dispõe de uma forma aberta, pois ele tem de seguir alguns procedimentos”, alertou.
Segundo João Paulo Lacerda, a MP é clara ao esclarecer que a dispensa de licitação é específica para atender os casos de calamidade pública decorrentes do novo coronavírus e específica também para atender aquelas pessoas que estão necessitando. “Não adianta nada você falar que estão dando um cheque em branco para o gestor público gastar. Não é isso, a dispensa também tem de seguir algumas formalidades legais. O gestor não vai poder comprar um EPI (Equipamento de Proteção Individual), equipamentos para uma UTI (Unidade de Tratamento Intensivo) ou quaisquer insumos para a prevenção e combate à Covid-19 indo até a empresa e pagando. É necessário ter pelo menos três orçamentos de modo que a administração pública possa comprar da empresa que ofereceu o menor preço”, detalhou.
Ele completa que é uma grande lenda dizer que uma administração pública está autorizada a adquirir quaisquer bens ou serviços por dispensa de licitação. “Isso não procede, a dispensa, como a própria MP traz, precisa seguir alguns requisitos. Se um gestor público fizer uma aquisição acima dos valores de mercado, poderá ser penalizado sim. Porque, embora a MP trouxe essa abertura para ele adquirir por meio da dispensa de licitação, o administrador público tem de seguir alguns requisitos. Ele não vai poder comprar fora do preço de mercado. A única coisa que a MP traz é que pode haver uma variação de mercado, pois, às vezes, o gestor vai fazer uma consulta de preços hoje e está em um certo valor, enquanto, amanhã, está um pouquinho mais caro. O que não pode acontecer é uma discrepância muito grande nos preços, já que se verificou em alguns casos uma diferença de mais de 100% nos valores de mercado do bem”, pontuou.
O presidente do IDAMS ressalta que o gestor tem de tomar cuidado com isso. “Ele precisa fazer a consulta prévia de preço, verificar com outros municípios e com outros Estados se esse bem não está superfaturado. Porque se tiver, com certeza, o administrador público vai ser penalizado, como nós já vimos em diversas operações da Polícia Federal em parceria com a CGU (Controladoria Geral da União), que verificaram que o gestor adquiriu o bem muito além do preço de mercado. Uma coisa que precisa tomar muito cuidado neste momento é que, geralmente, aparecem, infelizmente, algumas empresas que se aproveitam do momento e elevam de forma arbitrária os seus custos e preços. A administração pública tem de estar atenta a isso para que depois não possa incorrer em crimes de responsabilidade ou atos de improbidade administrativa e até crime”, reforçou.
O advogado especialista lembra que a Lei Federal nº 8.666, de 1993, trata dos limites e já tem previsão quanto à dispensa de licitação por emergência, mas o presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, resolveu editar a MP tratando especificamente da dispensa de licitação para atendimento de situações de emergência decorrentes da Covid-19. “Porém, por meio de uma MP que tem força de lei foi aumentado os valores para a dispensa de licitação não em relação à Covid-19, mas para comprar bens e serviços pela administração pública. Os valores, até 31 de dezembro, foram aumentados, ou seja, se antes você tinha R$ 17,6 mil para compras e serviços, agora esse valor aumentou para R$ 50 mil. Se você antes tinha R$ 33 mil para obras e serviços de engenharia, esse valor agora aumentou para R$ 100 mil, e repito, esses valores valem para todos os entes (União, Distrito Federal, Estados e Municípios) e não necessariamente tem de estar atrelado às ações de combate ao novo coronavírus”, citou.
Inclusive, conforme João Paulo Lacerda, foi discutido porque teve essa ampliação. “Se foi porque os pequenos municípios não conseguiram realizar o pregão normal e a administração teria de adquirir esses bens de uma forma mais rápida, mas, repito, tendo essa ampliação dos valores, seja para R$ 50 mil ou R$ 100 mil, o gestor público tem de estar atento e tem de cumprir alguns requisitos. É um ledo engano achar que o gestor tem carta branca para ir lá e comprar de quem bem entender sem cumprir os requisitos e sem estar atento ao preço. Porque caso contrário acontece o que vem acontecendo por aí, preços superfaturados ou preços muito acima dos cobrados pelo mercado. Toda essa liberdade que as MPs deram, seja aquela para adquirir produtos e serviços por dispensa de licitação para combater e prevenir a Covid-19, seja a de ampliação para aquisição de quaisquer produtos e serviços e a realização de obras e serviços de Engenharia, o gestor tem de estar atento para não exagerar e depois acabar respondendo judicialmente por isso”, disse.
Papel do IDAMS
Sobre o papel do IDAMS, o presidente falou que o Direito Administrativo está intimamente ligado à vida das pessoas, mesmo que elas não percebam. “A definição clássica dessa área do Direito é que se trata de um conjunto de regras, de normas e de princípios que regem as relações jurídicas entre a administração pública e as pessoas. Ou entre a coletividade e a administração pública. O Direito Administrativo sempre vai buscar o interesse da coletividade, o interesse público, portanto, muita gente, às vezes, vive e convive o dia a dia com essa área do Direito, mas nem imagina que ele está presente. Um exemplo bem simples é que, quando você acorda, acende a luz. Você está diante de uma concessão do serviço público de energia elétrica. Ou você vai até o banheiro para escovar os dentes, estamos diante de uma concessão do serviço público de saneamento básico. Ou se você vai à rua e pega um ônibus, está diante de uma concessão do serviço público de transporte coletivo urbano”, afirmou.
Ele pontua que, por meio do IDAMS, está sendo possível levar esse conhecimento às pessoas para que elas possam entender o que é o Direito Administrativo. “Em 2018, quando nós criamos o nosso Instituto, o Direito Administrativo no Estado era muito incipiente, nós não tínhamos sequer discussão acerca dele e nós criamos o IDAMS com a ideia de difundir, debater essa área do Direito. A partir do momento que as pessoas tenham conhecimento dessa área também importante, elas vão começar a cobrar melhor os seus direitos, cobrar serviços públicos de qualidade, cobrar os seus gestores realizem obras importantes. Dois anos de criação, mas já temos objetivos alcançados e queremos continuar avançando nisso, tudo em prol do interesse público”, relatou.
João Paulo Lacerda reforça que, com relação à questão do cheque em branco ao gestor público, é preciso levar em consideração que, em mais da metade dos municípios de Mato Grosso do Sul já tem reconhecido pela Assembleia Legislativa o estado de calamidade pública. “Ele é reconhecido pela Casa de Leis a pedido do município e, por meio do decreto legislativo expedido pela Assembleia Legislativa, o prefeito pode fazer a abertura de créditos extraordinários, fazer a alocação de recursos ou pode fazer a contratação por dispensa de licitação com fundamento na MP. O decreto expedido pela Casa de Leis é claro no sentido de que os gestores municipais vão realizar a dispensa de licitação respeitando a Lei 13.979, que foi alterada pela MP 926. Ou seja, ele tem de cumprir os requisitos legais, a expedição do decreto legislativo reconhecendo a situação de calamidade pública do município não sai dizendo que o prefeito está com uma caneta cheia de tinta para fazer o que bem entender”, alertou.
O especialista lembra que o prefeito também tem de cumprir os requisitos presentes na legislação vigente e até na contratação de pessoal. “O prefeito, geralmente, tem de contratar pessoal nessas horas para as áreas de saúde e o decreto também fala para cumprir os requisitos presentes na legislação local. Tudo isso tem limites, durante a pandemia o gestor não pode fazer o que ele quer, precisa cumprir os princípios da administração pública, dentre eles, o princípio da legalidade e da moralidade, não pode fazer o que ele pensa ser conveniente ou não, tem de respeitar os princípios. O IDAMS, nesse contexto, vem para ajudar o gestor público neste momento. Porque ele encontra dificuldades, seja pela falta de pessoal qualificado na Prefeitura, às vezes, o prefeito tem dificuldades de fazer uma prestação de contas ou até para fazer cumprir o decreto legislativo expedido pela Assembleia Legislativa reconhecendo a situação de calamidade pública”, analisou.
O presidente lembra que o Instituto vem para isso, ajudar o gestor, seja para colocar em prática as políticas públicas em época de pandemia seja para ajudá-lo na prestação de contas. “Nós estamos à disposição. Ao longo do ano passado e até março deste ano, realizamos diversas ações, sejam seminários, seja workshops, inclusive agora estamos inovando e fazendo esse trabalho por meio de lives, entrevistando personalidades do Direito Administrativo, seja de nível local ou seja em nível nacional para ajudar o gestor nessas dificuldades que encontra no dia a dia”, afirmou.
Recursos emergenciais
Sobre à MP que destinou recursos emergenciais para Distrito Federal, Estados e prefeituras, ele recorda que se criou um certo alvoroço quando ela foi editada, pois todos queriam saber onde poderiam gastar. “Dos R$ 60 bilhões destinados a todos os entes da Federação em quatro parcelas, R$ 10 bilhões o gestor tem de investir em saúde e assistência social. Tem esse carimbo, afinal, não faria sentido a liberação desse dinheiro se não tivesse essa destinação para duas áreas importantes, inclusive, quanto à saúde, o administrador público pode gastar com o pagamento de pessoal. O restante desse recurso, ou seja, os R$ 50 bilhões podem ser gastos em ações diversas no combate e prevenção da Covid-19 e também para mitigar os efeitos da doença”, detalhou.
O especialista relata que um município que vinha pagando a sua folha de pagamento com recursos pertinentes ao FPM (Fundo de Participação dos Municípios) ou dos repassados pelo Estado via ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) sofreu com a redução abrupta devido à crise causada pelo novo coronavírus. “Inclusive, recentemente, o TCE (Tribunal de Contas do Estado) respondeu a um questionamento de um determinado prefeito que, se para mitigar os efeitos da crise, poderia usar os recursos para pagar a folha do funcionalismo ou quitar outras dívidas que tinha e não honrou devido à redução da receita. O Tribunal disse que estava autorizado”, exemplificou.
João Paulo Lacerda acrescenta que é preciso reconhecer que nos municípios do Estado, principalmente os menores, as receitas próprias decorrentes da cobrança de IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano), ISS (Imposto Sobre Serviços) e ITBI (Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis) são muito pequenas. “As prefeituras vivem, praticamente, dos repasses do FPM e ICMS e, caso tire alguma dessas receitas, o município não sobrevive. Por isso, esse os recursos desse auxílio emergencial podem sim serem utilizados para pagamento do funcionalismo. Porém, temos de desmistificar junto à população que esses recursos foram suficientes para prestar o serviço adequado, pois, para muitos, o valor enviado não cobre o repasse ao qual ele recebia via FPM e ICMS”, comparou.
O presidente do IDAMS lembra que, quando saiu a nota técnica do TCE falando que o gestor terá de fazer a comprovação da aplicação dos recursos recebidos, muitos prefeitos ficaram preocupados. “A nota obriga o administrator público a justificar porque usou o recurso para quitar a folha de pagamento e, nesse sentido, terá de mostrar que teve queda no repasse de receita. O gestor, que fique bem claro, não dispõe de uma caneta cheia de tinta para gastar o dinheiro do jeito que entender. Ele precisa de uma boa equipe técnica para prestar contas, mas, muitos municípios não têm equipe para fazer esse tipo de justificativa”, revelou.
Outra questão abordada pelo especialista é que o controle social é muito importante, ou seja, aquele controle feito pela população. “A sociedade tem de ir lá e verificar junto ao site da Prefeitura onde estão sendo gastos os recursos. No reconhecimento do estado de calamidade pública pela Assembleia Legislativa, há um artigo específico que fala que todos os gastos dos gestores têm de estar no Portal da Transparência, portanto, o controle social é muito importante. Se não estiver disponível, o contribuinte pode pressionar a Prefeitura para colocar lá. Falta um pouco disso, as pessoas não fazem isso e é preciso fazer”, recomendou.
Quanto ao gestor público, neste momento, João Paulo Lacerda explica que é preciso se cercar de pessoas capacitadas, que tenham conhecimento técnico para ajudá-lo nessa situação. “São recursos recebidos e alguns prefeitos têm dificuldades até para saber como gastá-los. Por isso, ele precisa ter em sua equipe pessoas capacitadas para não cometer nenhum ato irregular, pois os órgãos de controle vão para cima e, se o gestor cometeu alguma irregularidade, com certeza vai pagar por isso”, finalizou.