O oferecimento de diversões ao povo por parte do poder público é política antiga, consagrada na conhecida expressão “pão e circo” (panem et circenses), que se refere à longínqua prática romana de agradar a população para mantê-la entretida e fiel à ordem estabelecida. Para além dos questionamentos referentes às reais intenções dos detentores do poder, os direitos fundamentais dos cidadãos evoluíram ao ponto de alcançarem também direitos difusos sociais e culturais, abrangendo aspectos impensáveis no estágio inicial liberal — como na conhecida música dos Titãs, “a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”. Em um cenário de crescentes necessidades sociais e escassez de recursos, a identificação de prioridades não é tarefa fácil. De qualquer maneira, é difícil concordar com dispêndios públicos excessivos com diversão quando gastos constitucionalmente vinculados — saúde e educação — não conseguem atingir os seus objetivos mínimos.
Sob o aspecto jurídico, a contratação de artistas pelo poder público é regida pelas normas gerais de licitação, consubstanciadas principalmente na Lei 8.666/93. A natural subjetividade relativa às artes torna complexa a comparação objetiva que caracteriza o procedimento licitatório. Entretanto, a Lei de Licitações foi clara — e restritiva — ao identificar a inviabilidade de licitação “para contratação de profissional de qualquer setor artístico, diretamente ou através de empresário exclusivo, desde que consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública” (artigo 25, inciso III). Além disso, os processos relativos às situações de inexigibilidade, necessariamente justificadas, deverão ser instruídos com a razão da escolha do fornecedor ou executante e justificativa do preço (artigo 26, caput e parágrafo único).
A inexigibilidade de competição, como se sabe, decorre da falta de pluralidade de alternativas, da impossibilidade de comparação objetiva entre as alternativas porventura existentes ou da inexistência de mercado concorrencial relativo ao objeto do futuro contrato. No que diz respeito ao objeto deste artigo, a inviabilidade de competição inicialmente decorre da consagração do artista pela crítica especializada ou opinião pública, requisito que contém grande margem de subjetividade. Em momento subsequente, a inexigibilidade passa e repousar também na exclusividade do empresário, em razão da contradição lógica entre “exclusividade” e “possibilidade de competição”.
O Tribunal de Contas da União examinou detidamente o tema ao apreciar a consulta formulada pelo Ministério do Turismo, tendo concluído que:
“9.2.1. a apresentação apenas de autorização/atesto/carta de exclusividade que confere exclusividade ao empresário do artista somente para o (s) dia (s) correspondente (s) à apresentação deste, sendo ainda restrita à localidade do evento, não atende aos pressupostos do art. 25, inciso III, da Lei 8.666/1993, representando impropriedade na execução do convênio;
9.2.2. do mesmo modo, contrariam o sobredito dispositivo legal as situações de contrato de exclusividade — entre o artista/banda e o empresário — apresentado sem registro em cartório, bem como de não apresentação, pelo convenente, do próprio contrato de exclusividade;
9.2.3. tais situações, no entanto, podem não ensejar, por si sós, o julgamento pela irregularidade das contas tampouco a condenação em débito do (s) responsável (is), a partir das circunstâncias inerentes a cada caso concreto, uma vez que a existência de dano aos cofres públicos, a ser comprovada mediante instauração da devida tomada de contas especial, tende a se evidenciar em cada caso, entre outras questões, quando:
9.2.3.1. houver indícios de inexecução do evento objeto do convênio; ou
9.2.3.2. não for possível comprovar o nexo de causalidade, ou seja, que os pagamentos tenham sido recebidos pelo artista ou por seu representante devidamente habilitado, seja detentor de contrato de exclusividade, portador de instrumento de procuração ou carta de exclusividade, devidamente registrados em cartório” (Acórdão 1.435/2017-Plenário).
A questão central — “exclusividade relativa do empresário”, ou seja, restrita a determinadas datas e locais — sem dúvida se faz presente na maioria das contratações de shows artísticos, sobretudo em municípios. Com efeito, nesses contratos comumente um empresário local “adquire” uma data com o empresário exclusivo do artista e daquele obtém a carta atestando a situação.
O ministro do TCU Walton Alencar, no voto condutor do Acórdão 2.730/2017-Plenário, traçou de forma clara o panorama:
“Não ignoro nem faço pouco caso da dificuldade de municípios de pequeno porte contratarem artistas consagrados sem o auxílio de produtoras. Nem mesmo me oponho à cobrança pelo serviço de intermediação. Todavia, ao optar por valer-se de intermediário, impõe a legislação a estrita observância ao procedimento previsto na Lei 8.666/1993, ou seja, instaurar processo licitatório que assegure igualdade de condições a todos os interessados em oferecer o serviço. Nesse caso, podem os intermediários interessados em contratar com o convenente reduzir sua margem de lucro. Os presentes autos reprisam situação observada em um sem número TCEs que tratam de convênios firmados entre o Ministério do Turismo e entidades ou municípios, para a promoção de eventos com shows de artistas pré-selecionados, em que são contratados intermediários, diretamente, por inexigibilidade de licitação, em afronta à legislação vigente, a valores com expressivo sobrepreço. Entretanto, na maior parte das vezes, como no caso destes autos, a ausência de documentos indicando o valor efetivamente auferido pelos artistas oculta a gravidade e a materialidade da irregularidade”.
Em outras palavras, o serviço de intermediação não guarda as características da exclusividade e, por essa razão, não se encontra abrangido pela inexigibilidade. Essas considerações, a propósito, cingem-se à questão da exclusividade, sem adentrar na justificativa dos valores e comprovação do respectivo pagamento, tema reservado para outro artigo.
Fonte: Conjur.