Não é qualquer novidade a dificuldade que o Judiciário brasileiro possui em lidar com o excesso de causas que deságuam, dia a dia, nos mais diversos tribunais do país. Uma série de fatores contribui para esse incremento desordenado, como a lentidão do próprio Judiciário (com o contributo dos dois meses de férias dos magistrados), o desaparelhamento (humano e material) em vários tribunais e o excesso de petições e recursos apresentados pelas partes (notadamente pelo poder público).
Várias soluções têm sido buscadas no sentido de incrementar a eficiência do Poder Judiciário no Brasil. Mas aqui destaco, sem qualquer remorso, que a culpa é quase sempre difundida a nós, advogados, via de regra, em decorrência do excesso de recursos que lançamos nas mais variadas instâncias. Tais problemas, conquanto sejam verdades notórias, merecem maior debate, que não guardam espaço no presente artigo.
Mas bem, volvendo ao ponto central, na tentativa de minimizar o número de litígios que chegam ao Judiciário, foi promulgada, em 1996, a Lei 9.307, que dispõe sobre a arbitragem. A legislação foi — e continua sendo — um avanço no cenário nacional, sobretudo porque, de regra, tem dado soluções mais efetivas a vários possíveis litígios, sem que as partes tenham de se submeter aos crivos da lentidão e ineficiência do Judiciário brasileiro. Atualmente, é quase inexistente a confecção de um grande contrato sem que haja uma cláusula compromissória.
Ouso dizer, porém, que os avanços decorrentes da Lei de Arbitragem não apresentaram solução para uma parte relevante dos problemas do Judiciário brasileiro. Digo isso pelo fato de que o artigo 1º da lei, quando de sua redação original, não possibilitava a arbitragem envolvendo a administração pública, situação que só foi “resolvida” com advento da Lei 13.129/2015, que, incluindo, dentre outros dispositivos legais, parágrafos ao artigo 1º, autorizou a administração pública direta e indireta a se utilizar da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis[1]. Dito de outro modo, em um plano subjetivo, não mais existem objeções à arbitragem na esfera pública.
Todavia, mesmo havendo uma permissão clara quanto ao sujeito (antes inexistente na lei), o objeto não é tão preciso. E aqui começa um imbróglio, que carrega um verdadeiro desafio de conteúdo semântico: o que são os direitos patrimoniais disponíveis da administração pública? Enfim, do que pode a administração dispor?
O tema parece ser de fácil acesso. Todavia, a vagueza do termo “disponibilidade” torna o assunto tormentoso. A doutrina estrangeira sempre teve a máxima dificuldade em definir o que são interesses disponíveis. Há quem defenda que cabe ao legislador definir quais são os interesses disponíveis e quais os indisponíveis, estabelecendo uma espécie de catálogo[2]. De tal modo, haveria mais segurança para a atuação da administração pública, pois ao menos se poderia falar em obediência irrestrita à cultura de cumprir a lei — é, nós não adotamos o princípio da liberdade de formas para a administração pública!
Apesar da força argumentativa das posições negacionistas, a doutrina tem orientado majoritariamente seus esforços a reconduzir a arbitragem a terrenos pouco duvidosos nos quais se possa falar de disponibilidade das partes sobre as matérias controvertidas. Mas, mesmo assim, ainda remanesce margem de dúvida razoável em vários pontos e, justamente por isso, o receio de alguma ação de controle mais inflexível ou mesmo de uma ação de improbidade administrativa. Na verdade, nem todo mundo comunga do mesmo conceito sobre interesse público.
Imagine-se o exemplo de um advogado público que tenha de emitir um parecer sobre um possível caso a ser conduzido pela via arbitral; que tenha a plena convicção de que é a melhor saída para a administração, pois, segundo sua concepção de interesse público, ali não remanescem dúvidas; seguro de que, pela via judicial, a administração pública pagaria uma quantia significativamente maior. Não seria surpresa se esse causídico, conhecedor de todos os benefícios da arbitragem, não ousasse agir conforme seu real entendimento, e por quê? Justamente pelo risco de sofrer uma medida repressiva em momento posterior. Enfim, é mais cômodo “cumprir a lei”, emitindo uma opinião jurídica no sentido de que, naquele caso, seria inviável a utilização da arbitragem, por se tratar de interesse indisponível. Solução pronta e sem maiores problemas. Exercício da função pública de prática solução.
Por mais que se pretenda estabelecer um rol de interesses manifestamente indisponíveis, e ainda que se esforce para delimitar uma lista de matérias passíveis de solução pela via arbitral, criando um verdadeiro fichário legislativo, sempre haverá uma margem de dúvidas, perturbações estas que existem inclusive na doutrina.
Jamais um instrumento normativo decorrente do Legislativo conseguirá abarcar, de forma exaustiva, uma listagem completa dos interesses ditos disponíveis e indisponíveis. De tal modo, sempre haverá a incerteza por parte do agente da administração pública responsável pela tomada de decisão.
Porém, ainda estamos num estágio menos avançado (se é que se possa considerar a existência de lei, prevendo esses catálogos de disponibilidade, um avanço) e, nesse primeiro degrau, o fantasma da improbidade administrativa sobressai, porque a dúvida castiga, ou, nas palavras de Shakespeare, “nossas dúvidas são traidoras e nos fazem perder o que, com frequência, poderíamos ganhar, por simples medo de arriscar”.
É, caro leitor, a assombração da improbidade administrativa pode afastar o melhor interesse público.
[1] Não se deve deixar de mencionar que os ajustes, transações e arbitragens no poder público iniciaram-se bem antes da modificação empreendida na Lei de Arbitragem pela Lei 13.129, de 2015.
[2] Nesse sentido, PÉREZ, Marta García. Arbitraje y Derecho Administrativo. Navarra: Aranzadi. 2011, p. 43-48.
Fonte: Conjur.