A vida acontece no município — as pessoas moram, trabalham, se irritam e se divertem verdadeiramente nas cidades, não nos estados ou na União. A política verdadeira também ocorre nos municípios, pois é lá que as pessoas votam e, como regra, possuem contato mais direto com os agentes políticos. As “bases” parlamentares estão nos municípios; deputados, governadores e senadores necessitam do apoio de lideranças locais para se elegerem. Nas pequenas cidades, o eleitor sabe onde mora o prefeito e onde é a fazenda do vereador, tem conhecimento do que fazem e deixam de fazer.
Nos municípios, o controle da administração pública segue a mesma lógica. O controle social tende a ser mais efetivo, pois fundado no rápido espraiar de informações relevantes e irrelevantes, boca a boca, no “pé do ouvido”. Ainda assim, a Constituição determina a existência de um sistema organizado de controle da administração municipal.
Controlar a arrecadação, gestão e aplicação de recursos públicos é missão incontornável do Estado Democrático de Direito. O exercício dessa missão é complexa em um Estado federal que contempla 5.570 municípios como entes integrantes da federação. Para além da natural dificuldade estrutural, existem ainda tensões políticas que não se acomodam facilmente no sistema de freios e contrapesos.
O presidente da Câmara Municipal de São Paulo, em recente entrevista, tratou da necessidade de mudança do Tribunal de Contas do Município de São Paulo. Segundo ele, existem vários vereadores favoráveis à extinção do TCM-SP, o que poderia ser feito por meio de emenda à Lei Orgânica Municipal[1]. Na Bahia, discussão relativa à composição dos limites de gastos com pessoal dos municípios envolve a ameaça de extinção do TCM-BA[2]. O Supremo Tribunal Federal, como se sabe, entendeu que é possível a extinção de Tribunal de Contas dos Municípios por meio de emenda constitucional estadual (ADI 5.763, que cuidava da extinção do TCM-CE). Em Goiás, finalmente, deputados estaduais reúnem assinaturas para tentar indicar cunhado do governador para o cargo de conselheiro do TCM-GO[3].
Os Tribunais de Contas são órgãos autônomos e independentes, com seu estatuto jurídico delineado pela Constituição. Trata-se de órgãos que auxiliam e fiscalizam os três Poderes, porém sem subordinação de nenhuma espécie a qualquer deles. No tocante ao controle externo, a utilização pela Constituição do termo “auxílio” não pode dar margem ao entendimento de que existe uma relação de hierarquia entre os Tribunais de Contas e o Legislativo. Como esclarece Odete Medauar[4], “confunde-se, desse modo, a função com a natureza do órgão. (...) a Constituição Federal, em artigo algum, utiliza a expressão órgão ‘auxiliar’; dispõe que o controle externo será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas”.
Ao caracterizar os Tribunais de Contas como órgãos essenciais e dotados de autonomia constitucional, o saudoso Diogo de Figueiredo Moreira Neto ressaltava a importância das cortes de contas como garantidoras dos valores político-constitucionais do Estado Democrático de Direito, por exercerem “funções indispensáveis ao funcionamento dos princípios republicano e democrático, no tocante a um dos mais delicados aspectos de qualquer complexo juspolítico, que é, desde a Magna Carta, a gestão fiscal, como a disposição político-administrativa dos recursos retirados impositivamente dos contribuintes”[5].
Não cabe, neste espaço, análise jurídica mais aprofundada a respeito da possibilidade de extinção de Tribunais de Contas — limito-me a trazer à lembrança parecer do professor Ives Gandra Martins segundo o qual a Constituição Federal assegura a permanência dos órgãos de controle externo preexistentes à sua edição[6]. De qualquer forma, as cortes de contas devem ser consideradas órgãos permanentes, integrados no sistema de controle da administração pública.
É possível discutir se o controle externo dos municípios feitos pelos TCEs, nos estados em que não existem TCMs, funciona; é necessário discutir se o controle feito pelos TCMs é, por sua vez, eficiente e eficaz. Só não há sentido em admitir que essas discussões continuem ao sabor de disputas políticas mesquinhas, entre os transitórios ocupantes do Legislativo e Executivo. Se um órgão de estatura constitucional, com atribuições relevantes ao ponto de seus membros terem as mesmas garantias da magistratura, puder ser extinto por norma municipal, realmente é difícil entender que deva existir.
Na gênese de todas as críticas está a mesma questão: a necessidade premente de mudança do modelo. Como já escrevi neste mesmo espaço, “a despeito da dificuldade de se imaginar qual seria o modelo mais adequado para a composição das cortes de contas, os fatos têm demonstrado que o modelo atual é totalmente inadequado. No tocante à escolha dos membros, a predominância política não mais se justifica em um órgão que possui atribuições essencialmente técnicas. Não me parece inadequado o provimento de parte dos cargos mediante critérios que incorporem experiência em gestão pública, ao contrário. O problema está na predominância desse critério e na desobediência reiterada, assistida de forma incompreensivelmente passiva pelo Judiciário. Entretanto, a atual forma de composição tem parcela relevante de responsabilidade pela inocuidade falta de muitos tribunais — não é incomum verificar a existência de estados falidos, com gestores com contas aprovadas”[7].
Reafirmo que o STF reiteradamente interpreta de forma desfavorável a amplitude e intensidade das competências dos Tribunais de Contas em razão, sobretudo, da origem de seus integrantes. O novo lance nesse jogo foi a decisão monocrática do ministro Alexandre de Moraes contrário ao exercício do controle concreto de constitucionalidade pelo TCU, mesmo após decisão colegiada da corte reconhecendo tal possibilidade para o CNJ. Mais do que permitir a extinção, o Judiciário tende a condenar os Tribunais de Contas à irrelevância, retirando-lhes toda operatividade. Esses tribunais costumam ser vistos como órgãos de segunda classe, refúgio de apaniguados, onde tudo pode ser resolvido politicamente, a despeito das competências e da qualificação técnica. Os rígidos requisitos constitucionais para a investidura são reiteradamente ignorados pelo Executivo e pelo Legislativo, que têm os Tribunais de Contas como espaços de sua propriedade. O Legislativo, por sua vez, somente fica eriçado quando interesses momentâneos são contrariados, mas não se move para reformar o sistema.
Por essas razões, o momento não deve ser objeto de preocupação somente dos TCMs. Nesse particular, pouco ou nada difere a vida no município, no estado ou na União. Ou o modelo de controle é aperfeiçoado, para que possa buscar nova legitimação perante a sociedade, ou todos perecerão, não importa por qual meio: extinção ou desidratação.
Enfim, é hora de fazer a travessia, como na inspirada poesia de Fernando Pessoa:
“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas
Que já tem a forma do nosso corpo
E esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares
É o tempo da travessia
E se não ousarmos fazê-la
Teremos ficado para sempre à margem de nós mesmos”.
Fonte: Conjur.
[1] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/03/ou-o-tcm-muda-ou-sera-extinto-diz-presidente-da-camara-municipal-de-sp.shtml
[2] https://www.bahianoticias.com.br/noticia/217678-coronel-recua-e-afirma-que-nao-vai-protocolar-pec-que-preve-extincao-do-tcm.html
[3] https://www.opopular.com.br/editorias/politica/assembleia-de-goi%C3%A1s-re%C3%BAne-assinaturas-para-indica%C3%A7%C3%A3o-de-cunhado-do-governador-ao-tcm-1.1474834
[4] MEDAUAR, Odete. O controle da Administração Pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 140.
[5] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. O parlamento e a sociedade como destinatários do trabalho dos tribunais de contas. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP. Belo Horizonte, ano 1, n. 2, p. 27-64, jul./set. 2003
[6] “Ao determinar que novos órgãos municipais não poderão ser criados, garantiu, de forma definitiva, o constituinte, a indissolubilidade das Cortes existentes, não outorgando possibilidade a que o Poder Legislativo, por lei infraconstitucional, as extinguisse. Em outras palavras, ao não permitir a criação de novos tribunais e ao exigir o controle externo das contas municipais pelas Cortes já existentes, o constituinte retirou ao Poder Legislativo Estadual e ao Municipal a possibilidade de alterar os cânones conformadores de sua estrutura, até porque, se permitisse que fizessem tais alterações, estaria permitindo a interferência direta na própria estrutura da Federação. No máximo, podem criar novos Tribunais nos termos da lei suprema”. MARTINS, Ives Gandra da Silva. As Cortes de Contas são instituições permanentes de impossível extinção no termos da Constituição Federal – sua competência é imodificável por legislação infraconstitucional. Boletim de Direito Administrativo, São Paulo, ano 8, n.5, maio/1992, p. 289-297.
[7] https://www.conjur.com.br/2017-abr-06/interesse-publico-controle-externo-contas-caminho