Aos 17 anos, o poeta pernambucano Manuel Bandeira descobriu ser tuberculoso. À época, nada mais trágico! Sua vida se reinventa por seus poemas, entre os quais se destaca o intitulado Pneumotórax, em cujo segundo verso Bandeira lamenta “A vida que podia ter sido e não foi”. Que particularidade existe entre o dilema de Manuel Bandeira e a prática na Administração Pública Brasileira?
A Administração Pública no Brasil vive ao derredor de um impasse: pouco inventiva e amiúde pobre em termos de fundamentação, leva à falaciosa dicotomia entre cumprir a lei, em nome de uma conjeturada segurança, ou ser eficiente, por meio de atitudes mais ousadas, nem sempre previstas expressamente em lei, mas capazes de garantir a verdadeira efetividade da função administrativa.
Esse embaraço, que tumultua a cabeça do gestor público, arrasta-se no cotidiano da máquina administrativa, pois embrulha boas atitudes, estorva o que seria bom e limita a própria eficiência. Por que, então, a Administração vive e vivencia seu cotidiano sem ser o que poderia – ou melhor, deveria – ser?
Há uma série de razões, mas duas merecem realce: a primeira delas, talvez a mais importante, cinge-se ao medo, ao receio de um controle (via de regra externo) desmesuradamente rigoroso, destoante da prática administrativa, que enxerga (e determina) o que a Administração pode fazer de melhor, ainda que o “melhor e mais eficiente” não lhe seja peculiar; o segundo, que decorre parcialmente do primeiro, também se relaciona com o medo e a cultura extremamente formalista que molda a Administração Pública no Brasil e que promove, ao menos quanto à responsabilização, maior temor. Eis aqui plantadas as sementes para a paralisação!
Mas, se ao gestor público é imposto o dever de agir, cada vez mais com menos, é dizer, é cominada a obrigação de ser eficiente, como conciliar essa diretriz, de matriz constitucional, com o legalismo que permeia o atuar administrativo? A indagação, senão insolente, é parcialmente irresolvível, porque, entre o “não fazer” – para não ser responsabilizado – e o “fazer”, deixando de lado vetustos e ultrapassados comandos normativos, a omissão é mais segura, pois creia, leitor, a omissão gera menos problemas! Haja inquietude a quem pretende ousar!
Um simplório exemplo. Até o dia 06 de setembro de 2019, vigia a redação do art. 21, III, da Lei nº 8.666/93, que determinava a obrigatoriedade de publicação, em jornal de grande circulação, dos avisos contendo os resumos dos editais de licitação. Ou seja, a lei, de 1993, previa o que, para a época, era óbvio – publicação em jornal de grande circulação, face à inexistência, na vida administrativa brasileira, da rede mundial de computadores. Mas o tempo mudou e, via de regra, as publicações hoje ocorrem em portais eletrônicos – o que esclarece, sem necessidade de maiores explicações, a edição da Medida Provisória nº 896/19, que altera a redação do art. 21, III, da Lei nº 8.666/93.
Continuemos o raciocínio, imaginando um caso, absolutamente verossímil, de um procedimento anterior à modificação normativa, em que o aviso de licitação não foi publicado em jornal de grande circulação, embora tenha sido publicado nos portais eletrônicos do ente ou do órgão interessados. A indagação é: anula-se o procedimento, face à manifesta ilegalidade ou seria possível a convalidação do ato? No embate entre a legalidade e a eficiência, qual deve ser prestigiada? Há outros casos, claro, em que o administrador se vê diante de problemas que poderiam ser facilmente solucionados, mas que, por imposição normativa em sentido contrário, e diante sobretudo do medo, prefere não arriscar, ainda que a omissão engesse a Administração. “Dorme tranquilo quem nega”.
Mas nem tudo é só problema – a nebulosidade não perdura para sempre! E eis que começamos a engatinhar rumo a uma nova forma de agir para a Administração Pública. Nesse sentido, valem nota modificações normativas mais amplas (uma certa antinomia, bem se veja), que produzem uma margem de atuação igualmente mais estendida, como, por exemplo, a possibilidade de a Administração Pública se submeter à arbitragem, desde que se trate de direitos patrimoniais disponíveis (art. 1º, § 1º da Lei nº 9.307/96). O legalismo cedeu um certo espaço de atuação à Administração, que pode romper barreiras e definir, na prática, os tais “direitos patrimoniais disponíveis” – inobstante o risco, ainda existente, de o administrador vir a ser apenado pela atuação do controle externo, se este simplesmente discordar e definir outro conceito que melhor se lhe afigure.
As mudanças vêm e ainda estão por vir, na busca incessante de uma Administração Pública mais consensual, dialógica, voltada à efetividade, onde não prepondere o medo (vide as alterações na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB) e, mais que isso, onde se possa realizar e concretizar o ideário constitucional de uma Administração focada no cidadão, e não em si mesma.
Não se pode compactuar com a paralisação da Administração, com a continuidade do que “podia ter sido e não foi”. Manuel Bandeira, acometido do medo aos 17 anos de idade, somente veio a falecer com 82 anos, superando o fatalismo e vivenciando quase 7 décadas daquela tal “vida que podia ter sido e não foi”. Ao contrário de Bandeira, que lidou sozinho com as dores e as consequências do medo, a Administração Pública acossada e temerosa fará sofrer os administrados, uma pluralidade de pessoas incapaz de suportar as dores de um tão aguerrido “pneumotórax”!
Fonte: Conjur.