A Lei 13.655/18 (que alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro) nasceu com o declarado propósito de conferir maior segurança jurídica na regulamentação, interpretação e aplicação da legislação de Direito Público. No PLS 349/2015, o autor, senador Antônio Anastasia, apresentou a seguinte justificativa:
“Como fruto da consolidação da democracia e da crescente institucionalização do Poder Público, o Brasil desenvolveu, com o passar dos anos, ampla legislação administrativa que regula o funcionamento, a atuação dos mais diversos órgãos do Estado, bem como viabiliza o controle externo e interno do seu desempenho. Ocorre que, quanto mais se avança na produção dessa legislação, mais se retrocede em termos de segurança jurídica. O aumento de regras sobre processos e controle da administração têm provocado aumento da incerteza e da imprevisibilidade e esse efeito deletério pode colocar em risco os ganhos de estabilidade institucional. [...] O que inspira a proposta é justamente a percepção de que os desafios da ação do Poder Público demandam que a atividade de regulamentação e aplicação das leis seja submetida a novas balizas interpretativas, processuais e de controle, a serem seguidas pela administração pública federal, estadual e municipal. A ideia é incluir na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei 4.657/1942) disposições para elevar os níveis de segurança jurídica e de eficiência na criação e aplicação do direito público”.
É, no mínimo, interessante pensar na edição de uma lei que se destina à interpretação do Direito Público. É curioso, por outro lado, pensar na necessidade de interpretar uma lei cujo objetivo confesso é auxiliar a interpretação de outras. Entretanto, mesmo uma olhada superficial nos dispositivos acrescidos pela Lei 13.655/18 é capaz de constatar o excesso de termos e expressões imprecisas que, se não tratados devidamente, podem reforçar a insegurança jurídica que o diploma visou combater. Vejam-se, por exemplo, as expressões “valores jurídicos abstratos” (artigo 20), “consequências práticas da decisão” (artigo 20), “regularização de modo proporcional e equânime” (artigo 21, parágrafo único), “obstáculos e dificuldades reais do gestor” (artigo 22) e “erro grosseiro” (artigo 28), além da conhecida, mas confusa, “interesse geral”.
A interpretação visa precisar o sentido, alcance, extensão e condições e possibilidades de aplicação das normas aos casos concretos. Contrariando o conhecido brocardo in claris cessat interpretatio, anota Karl Larez:
“Objeto da interpretação é o texto legal. Por interpretação dum texto entendemos a exposição, o esclarecimento, do sentido nele encerrado. Daí não se segue que só um texto particularmente obscuro, difícil de entender ou impreciso careça de interpretação. Pelo contrário, a necessidade de interpretação de todos os textos logo deriva, como vimos antes, de a maioria das representações gerais e dos conceitos da linguagem corrente terem ‘contornos imprecisos’. Acresce que o uso linguístico muitas vezes oscila e que o significado duma palavra pode variar segundo a posição na frase, a acentuação ou o contexto do ‘discurso’. Mesmo onde o legislador definiu para seu uso um conceito, o delimitou portanto em pormenor, eis que a definição quase sempre contém novos elementos que precisam duma determinação mais pormenorizada. Quando o código Civil alemão faz saber, por exemplo, que a expressão ‘imediatamente’ significa o mesmo que ‘sem demora culposa’, é agora preciso a interpretação para saber quando é ‘culposa’ a demora. Uma exatidão completa da delimitação só se pode alcançar quando, como é o caso da marcação de prazos, se pode trabalhar com números exatos ou quando se trata dum conceito individual”[1].
Importante, pois, tratar da interpretação do novo diploma. Nesse particular, prevê a própria Lindb:
Art. 30. As autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
O Decreto Federal 9.830/2019, por exemplo, é instrumento norteador da interpretação da Lindb e, via de consequência, de contenção da discricionariedade no âmbito da administração federal. A respeito do decreto federal, convém reconhecer a competência do chefe do Executivo para baixar regulamentos na respectiva esfera governamental com o intuito de estabelecer regras e procedimentos complementares para fiel execução das leis pelos órgãos e entidades da administração. O decreto federal tem sua aplicabilidade restrita à esfera federal, o que não afasta a possibilidade de que os demais entes (estados, Distrito Federal e municípios) decidam-se por aplicá-lo — o decreto federal — subsidiariamente, baixando seus próprios regulamentos para fiel exercício do que já é de suas respectivas competências. Em rigor, como tem ressaltado Márcio Cammarosano, não é a lei que é objeto de regulamentação, mas a atuação do agente administrativo com vistas à sua fiel aplicação.
Em razão das citadas características da lei, a doutrina brasileira tem assumido o papel de protagonista no importante processo de sua interpretação e mesmo divulgação no meio jurídico. Cumprindo esse relevante mister, o Instituto Brasileiro de Direito Administrativo realizou, no dia 14 de junho, seminário docente intitulado “Impactos de Lei nº 13.655/18 no Direito Administrativo”[2], no qual aprovou os seguintes “Enunciados relativos à interpretação da Lei de Introdução às Normas do Direto Brasileiro – LINDB e seus impactos no Direito Administrativo”:
A participação de atores variados robustece o processo interpretativo, notadamente em se tratando de normas que trabalham com a categoria “interesse público” (ou “interesses gerais”, na dicção da Lindb) e que serão aplicadas, predominantemente, pela administração pública. A textura relativamente aberta dos novos preceitos acrescidos à Lindb torna ainda mais importante o percurso interpretativo para que a segurança jurídica, objetivo confesso, possa ser privilegiada.
[1] LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do Direito. Trad. José de Sousa e Brito e José Antônio Veloso. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
[2] Participaram do encontro os seguintes professores: Adriana da Costa R. Schier (PR), Clóvis Beznos (SP), Cristiana Fortini (MG), Emerson Gabardo (PR), Florivaldo Dutra de Araújo (MG), Geraldo Spagno (MG), João Paulo Lacerda (MS), Joel Niebuhr (SC), José Osório Nascimento Neto (PR), Lígia Melo Casimiro (CE), Maria Fernanda Pires (MG ), Raquel Urbano de Carvalho (MG), Rogério Medeiros (MG), Rodrigo Valgas dos Santos (SC), Rúsvel Beltrame da Rocha (MG) e Pedro Niebuhr (SC), sob a coordenação de André Freire (SP), Irene Nohara (SP), Luciano Ferraz (MG), Vanice Valle (RJ) e Fabrício Motta (GO). De acordo com notícia divulgada no site do IBDA, “na metodologia utilizada, os participantes foram inicialmente divididos em quatro grupos temáticos (Conceitos abertos na Lindb; Proporcionalidade e dificuldades reais; Invalidação e segurança jurídica; Responsabilização pessoal) e elaboraram, individualmente e previamente à data do encontro, papers abordando questões ligadas ao tema central de cada grupo. Os papers foram enviados aos coordenadores para, a partir da leitura e identificação de convergências e controvérsias, elaborarem o roteiro de debates. No dia do Seminário, cada grupo se reuniu para debater o respectivo tema central, propondo a elaboração de ementas voltadas à análise das questões tratadas. As ementas de cada grupo foram, posteriormente, analisadas por grupo revisor. Finalmente, foi realizada sessão plenária, com a presença de todos os participantes, para discussão e aprovação (por maioria qualificada dos presentes) dos enunciados apresentados por todos os grupos temáticos”.
Fonte: Conjur.