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Pela segurança jurídica, precisamos tratar da interpretação da Lindb

Por Fabrício Motta



A Lei 13.655/18 (que alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro) nasceu com o declarado propósito de conferir maior segurança jurídica na regulamentação, interpretação e aplicação da legislação de Direito Público. No PLS 349/2015, o autor, senador Antônio Anastasia, apresentou a seguinte justificativa:

“Como fruto da consolidação da democracia e da crescente institucionalização do Poder Público, o Brasil desenvolveu, com o passar dos anos, ampla legislação administrativa que regula o funcionamento, a atuação dos mais diversos órgãos do Estado, bem como viabiliza o controle externo e interno do seu desempenho. Ocorre que, quanto mais se avança na produção dessa legislação, mais se retrocede em termos de segurança jurídica. O aumento de regras sobre processos e controle da administração têm provocado aumento da incerteza e da imprevisibilidade e esse efeito deletério pode colocar em risco os ganhos de estabilidade institucional. [...] O que inspira a proposta é justamente a percepção de que os desafios da ação do Poder Público demandam que a atividade de regulamentação e aplicação das leis seja submetida a novas balizas interpretativas, processuais e de controle, a serem seguidas pela administração pública federal, estadual e municipal. A ideia é incluir na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei 4.657/1942) disposições para elevar os níveis de segurança jurídica e de eficiência na criação e aplicação do direito público”.

É, no mínimo, interessante pensar na edição de uma lei que se destina à interpretação do Direito Público. É curioso, por outro lado, pensar na necessidade de interpretar uma lei cujo objetivo confesso é auxiliar a interpretação de outras. Entretanto, mesmo uma olhada superficial nos dispositivos acrescidos pela Lei 13.655/18 é capaz de constatar o excesso de termos e expressões imprecisas que, se não tratados devidamente, podem reforçar a insegurança jurídica que o diploma visou combater. Vejam-se, por exemplo, as expressões “valores jurídicos abstratos” (artigo 20), “consequências práticas da decisão” (artigo 20), “regularização de modo proporcional e equânime” (artigo 21, parágrafo único), “obstáculos e dificuldades reais do gestor” (artigo 22) e “erro grosseiro” (artigo 28), além da conhecida, mas confusa, “interesse geral”.

A interpretação visa precisar o sentido, alcance, extensão e condições e possibilidades de aplicação das normas aos casos concretos. Contrariando o conhecido brocardo in claris cessat interpretatio, anota Karl Larez:

“Objeto da interpretação é o texto legal. Por interpretação dum texto entendemos a exposição, o esclarecimento, do sentido nele encerrado. Daí não se segue que só um texto particularmente obscuro, difícil de entender ou impreciso careça de interpretação. Pelo contrário, a necessidade de interpretação de todos os textos logo deriva, como vimos antes, de a maioria das representações gerais e dos conceitos da linguagem corrente terem ‘contornos imprecisos’. Acresce que o uso linguístico muitas vezes oscila e que o significado duma palavra pode variar segundo a posição na frase, a acentuação ou o contexto do ‘discurso’. Mesmo onde o legislador definiu para seu uso um conceito, o delimitou portanto em pormenor, eis que a definição quase sempre contém novos elementos que precisam duma determinação mais pormenorizada. Quando o código Civil alemão faz saber, por exemplo, que a expressão ‘imediatamente’ significa o mesmo que ‘sem demora culposa’, é agora preciso a interpretação para saber quando é ‘culposa’ a demora. Uma exatidão completa da delimitação só se pode alcançar quando, como é o caso da marcação de prazos, se pode trabalhar com números exatos ou quando se trata dum conceito individual”[1].

Importante, pois, tratar da interpretação do novo diploma. Nesse particular, prevê a própria Lindb:

Art. 30. As autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)

O Decreto Federal 9.830/2019, por exemplo, é instrumento norteador da interpretação da Lindb e, via de consequência, de contenção da discricionariedade no âmbito da administração federal. A respeito do decreto federal, convém reconhecer a competência do chefe do Executivo para baixar regulamentos na respectiva esfera governamental com o intuito de estabelecer regras e procedimentos complementares para fiel execução das leis pelos órgãos e entidades da administração. O decreto federal tem sua aplicabilidade restrita à esfera federal, o que não afasta a possibilidade de que os demais entes (estados, Distrito Federal e municípios) decidam-se por aplicá-lo — o decreto federal — subsidiariamente, baixando seus próprios regulamentos para fiel exercício do que já é de suas respectivas competências. Em rigor, como tem ressaltado Márcio Cammarosano, não é a lei que é objeto de regulamentação, mas a atuação do agente administrativo com vistas à sua fiel aplicação.

Em razão das citadas características da lei, a doutrina brasileira tem assumido o papel de protagonista no importante processo de sua interpretação e mesmo divulgação no meio jurídico. Cumprindo esse relevante mister, o Instituto Brasileiro de Direito Administrativo realizou, no dia 14 de junho, seminário docente intitulado “Impactos de Lei nº 13.655/18 no Direito Administrativo”[2], no qual aprovou os seguintes “Enunciados relativos à interpretação da Lei de Introdução às Normas do Direto Brasileiro – LINDB e seus impactos no Direito Administrativo”:

  1. As expressões “esfera administrativa, controladora e judicial” contidas na LINDB abrangem o exercício de todas as funções estatais que envolvam aplicação do ordenamento jurídico.
  2. A motivação exigida pelo parágrafo único do art.20 da LINDB poderá se dar por remissão a orientações gerais, precedentes administrativos ou atos normativos. A possibilidade de motivação por remissão, contudo, não exime a Administração Pública da análise das particularidades do caso concreto, inclusive para eventual afastamento da orientação geral.
  3. A abertura a distintas “possíveis alternativas”, prevista no parágrafo único do art. 20, é imposta a todos os destinatários da LINDB. Os controles administrativo e judicial devem considerar o cenário vivenciado pela Administração ao tempo da decisão ou opinião, reservando-se a possibilidade de indicação pelo controlador, sem juízo de invalidação ou reprovação, de alternativas administrativas mais adequadas para o futuro.
  4. As “consequências práticas” às quais se refere o art. 20 da LINDB devem considerar, entre outros fatores, interferências recíprocas em políticas públicas já existentes.
  5. A avaliação das consequências práticas, jurídicas e administrativas é indispensável às decisões nas esferas administrativa, controladora e judicial, embora não possa ser utilizada como único fundamento da decisão ou opinião.
  6. A referência a “valores jurídicos abstratos” na LINDB não se restringe à interpretação e aplicação de princípios, abrangendo regras e outras normas que contenham conceitos jurídicos indeterminados.
  7. Na expressão “regularização” constante do art. 21 da LINDB estão incluídos os deveres de convalidar, converter ou modular efeitos de atos administrativos eivados de vícios sempre que a invalidação puder causar maiores prejuízos ao interesse público do que a manutenção dos efeitos dos atos (saneamento). As medidas de convalidação, conversão, modulação de efeitos e saneamento são prioritárias à invalidação.
  8. A expressão “equânime”, contida no parágrafo único do art. 21 da LINDB, não transmite conceito novo que não esteja previsto no ordenamento jurídico, remetendo às ideias de isonomia, razoabilidade, proporcionalidade, equidade e ponderação dos múltiplos interesses em jogo.
  9. A expressão “interesse geral” prevista na LINDB significa “interesse público”, conceito que deve ser extraído do ordenamento jurídico.
  10. A expressão “ônus e perdas anormais e excessivos”, constante do parágrafo único do art. 21 da LINDB, faz referência à imposição de obrigações de fazer ou não fazer (ônus) e a qualquer tipo de dano, a exemplo dos danos materiais, morais, emergentes e lucros cessantes (perdas), que não se mostrem razoáveis e proporcionais no caso concreto.
  11. Na expressão “dificuldades reais” constante do art. 22 da LINDB estão compreendidas carências materiais, deficiências estruturais, físicas, orçamentárias, temporais, de recursos humanos (incluída a qualificação dos agentes) e as circunstâncias jurídicas complexas, a exemplo da atecnia da legislação, as quais não podem paralisar o gestor.
  12. No exercício da atividade de controle, a análise dos obstáculos e dificuldades reais do gestor, nos termos do art. 22 da LINDB, deve ser feita também mediante a utilização de critérios jurídicos, sem interpretações pautadas em mera subjetividade.
  13. A competência para dizer qual é a melhor decisão administrativa é do gestor, não do controlador. O ônus argumentativo da ação controladora que imputa irregularidade ou ilegalidade à conduta é do controlador, estabelecendo-se diálogo necessário e completo com as razões aduzidas pelo gestor.
  14. Em homenagem ao princípio da proporcionalidade, a dosimetria necessária à aplicação das sanções será melhor observada quando as circunstâncias agravantes ou atenuantes aplicáveis ao caso forem positivadas preferencialmente em lei, regulamentos, súmulas ou consultas administrativas.
  15. Para efeito do disposto no artigo 22, §2º da LINDB, os conceitos do direito penal podem ser usados na aplicação das sanções, subsidiariamente, desde que derivem de um núcleo comum constitucional entre as matérias, lastreado nos princípios gerais do direito sancionador, sobretudo quando não houver regulação específica.
  16. Diante da indeterminação ou amplitude dos conceitos empregados pela lei, se, no caso concreto, a decisão do administrador mostrar-se razoável e conforme o direito, o controlador e o juiz devem respeitá-la, ainda que suas conclusões ou preferências pudessem ser distintas caso estivessem no lugar do gestor.
  17. É imprescindível, a partir da ideia de confiança legítima, considerar a expectativa de direito como juridicamente relevante diante do comportamento inovador da Administração Pública, preservando-se o máximo possível as relações jurídicas em andamento. Neste contexto, torna-se obrigatória, sempre para evitar consequências desproporcionais, a criação de regime de transição, com vigência ou modulação para o futuro dos efeitos de novas disposições ou orientações administrativas.
  18. A LINDB é norma jurídica que impacta todas as regras de direito público, especialmente aquelas que tratam da responsabilização dos agentes públicos que decidem ou emitem opiniões técnicas.
  19. A modalidade culposa de improbidade administrativa não se harmoniza com a Constituição, porque improbidade é ilegalidade qualificada pela intenção desonesta e desleal do agente. Não obstante, analisando-se a legislação infraconstitucional, o art. 10 da Lei de Improbidade Administrativa deve ser interpretado de acordo com o art. 28 da LINDB, afastando-se a possibilidade de configuração da improbidade sem a presença de erro grosseiro do agente (culpa grave).
  20. O art. 28 da LINDB, para os casos por ele especificados (decisões e opiniões técnicas) disciplinou o §6º do artigo 37 da Constituição, passando a exigir dolo ou erro grosseiro (culpa grave) também para fins da responsabilidade regressiva do agente público.
  21. Os artigos 26 e 27 da LINDB constituem cláusulas gerais autorizadoras de termos de ajustamento, acordos substitutivos, compromissos processuais e instrumentos afins, que permitem a solução consensual de controvérsias.

A participação de atores variados robustece o processo interpretativo, notadamente em se tratando de normas que trabalham com a categoria “interesse público” (ou “interesses gerais”, na dicção da Lindb) e que serão aplicadas, predominantemente, pela administração pública. A textura relativamente aberta dos novos preceitos acrescidos à Lindb torna ainda mais importante o percurso interpretativo para que a segurança jurídica, objetivo confesso, possa ser privilegiada.

 

[1] LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do Direito. Trad. José de Sousa e Brito e José Antônio Veloso. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
[2] Participaram do encontro os seguintes professores: Adriana da Costa R. Schier (PR), Clóvis Beznos (SP), Cristiana Fortini (MG), Emerson Gabardo (PR), Florivaldo Dutra de Araújo (MG), Geraldo Spagno (MG), João Paulo Lacerda (MS), Joel Niebuhr (SC), José Osório Nascimento Neto (PR), Lígia Melo Casimiro (CE), Maria Fernanda Pires (MG ), Raquel Urbano de Carvalho (MG), Rogério Medeiros (MG), Rodrigo Valgas dos Santos (SC), Rúsvel Beltrame da Rocha (MG) e Pedro Niebuhr (SC), sob a coordenação de André Freire (SP), Irene Nohara (SP), Luciano Ferraz (MG), Vanice Valle (RJ) e Fabrício Motta (GO). De acordo com notícia divulgada no site do IBDA, “na metodologia utilizada, os participantes foram inicialmente divididos em quatro grupos temáticos (Conceitos abertos na Lindb; Proporcionalidade e dificuldades reais; Invalidação e segurança jurídica; Responsabilização pessoal) e elaboraram, individualmente e previamente à data do encontro, papers abordando questões ligadas ao tema central de cada grupo. Os papers foram enviados aos coordenadores para, a partir da leitura e identificação de convergências e controvérsias, elaborarem o roteiro de debates. No dia do Seminário, cada grupo se reuniu para debater o respectivo tema central, propondo a elaboração de ementas voltadas à análise das questões tratadas. As ementas de cada grupo foram, posteriormente, analisadas por grupo revisor. Finalmente, foi realizada sessão plenária, com a presença de todos os participantes, para discussão e aprovação (por maioria qualificada dos presentes) dos enunciados apresentados por todos os grupos temáticos”.

 

Fonte: Conjur.

 

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