Em momento tão sensível, urge ter dupla cautela para a abordagem de assuntos que tangenciem o ambiente político. Fanáticos de lado a lado tendem a catalogar as pessoas pelas opiniões ainda que técnicas sobre determinado tema. Os mais precavidos podem considerar irracional a pauta do artigo. Mas vamos lá.
Os jornais de segunda-feira (25/2)[1] noticiaram o envio de e-mail pelo Ministério da Educação para todas as escolas do país, no qual se solicita aos diretores que, “no primeiro dia da volta às aulas, seja lida a carta que segue em anexo nesta mensagem, de autoria do Ministro da Educação para professores, alunos e demais funcionários da escola, todos perfilados diante da bandeira do Brasil (se houver) e que seja executado o hino nacional”.
A carta que acompanha o e-mail, de autoria do ministro, está assim redigida:
“Brasileiros! Vamos saudar o Brasil dos novos tempos e celebrar a educação responsável e de qualidade a ser desenvolvida na nossa escola pelos professores, em benefício de vocês, alunos, que constituem a nova geração. Brasil acima de tudo. Deus acima de todos!”.
Como de se esperar, a medida provocou diversas reações. No ambiente belicoso em que estamos inseridos, as vaias e aplausos tomam conta dos comentários que se seguem às diversas reportagens sobre o ocorrido.
As críticas, dos mais variados matizes, destacam desde a intempestividade do e-mail, uma vez que, em 25 de fevereiro, não caberia mais falar em primeiro dia do ano letivo, a ilicitude da exposição das crianças, a possível ordem travestida de recomendação, uma vez emanada do ministro, e, claro, o conteúdo da carta.
A mensagem ministerial, apesar de breve, engatilha a crítica, quer de parte da população, quer de alguns profissionais do Direito indagados sobre o assunto, substancialmente por (i) fazer alusão a Deus e desrespeitar a laicidade do Estado, afirmada pela Constituição da República nos artigos 5, VI e 19, I[2]; (ii) utilizar-se do slogan de campanha eleitoral. Profissionais ouvidos sobre o assunto aventam a possibilidade de improbidade administrativa, vislumbrando ofendido o princípio da impessoalidade afirmado quer no caput, quer no parágrafo 1º do artigo 37 da Constituição da República[3].
A carta do ministro pode ser examinada sob diversos ângulos.
A referência a Deus já suscitaria um interessante debate. Apesar de a Constituição afirmar a laicidade do Estado, não podemos ignorar que há uma série de possíveis ou reais violações a tal perfil, enraizadas na nossa sociedade, que vão desde a pluralidade de feriados religiosos à presença de objetos de propriedade estatal, de cunho religioso, que adornam espaços públicos, passando pela referência à religião com que agentes políticos se apresentam.
A extensão da laicidade do Estado pautou os debates no âmbito do STF algumas vezes, destacando-se o julgamento da ADI 2.076, quando se afirmou que o preâmbulo da Constituição da República é desprovido de força normativa e, mais recentemente, quando, em placar apertado, se entendeu que o artigo 210, parágrafo 1º, da Constituição permite o ensino religioso confessional nas escolas públicas, superando-se a tese defendida pelo ministro Luis Roberto Barroso para quem apenas a história das religiões poderia ser ensinada. O entendimento final do Pleno não sinaliza o apreço necessário pela laicidade, em nosso sentir.
A despeito do texto constitucional, e com alguma contribuição do Poder Judiciário, a realidade nos confronta com exemplos de um Estado laico, mas nem tanto[4]. A carta do ministro estaria, já pela alusão a Deus, na contramão do que apregoa a Constituição. Mas ao primeiro problema se associa um segundo, relativo ao uso do slogan da campanha do agora presidente, Jair Bolsonaro, em documento oficial de seu governo.
Dispensa maior esforço, penso, perceber o desacerto da referência ao slogan da campanha. O próprio ministro deu-se conta do malfeito. Não bastasse o fogo que acende, revolvendo todo o turbulento período de campanha, quando já se é governo, a referência ao slogan é juridicamente inaceitável. Uma vez eleito, o agente passa a encarnar o Estado.
Sob este viés, qualquer atuação do governo é a atuação do próprio Estado brasileiro, razão pela qual a utilização do slogan da campanha eleitoral, juridicamente falando, é contrária aos comandos constitucionais que guiam a administração pública.
Entre as demais possíveis violações à ordem jurídica, poder-se-ia suscitar a ruptura com o parágrafo 1º do artigo 37 da Constituição, segundo o qual “a publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos”.
É inquestionável que o slogan constante da carta remonta ao cenário eleitoral e reforça a imagem do presidente. Indiscutível que a utilização e, pior, a pretensão de ver repetido o slogan pelos diretores das escolas são inadequadas. Finda a campanha, inaugura-se um governo de quem se deve cobrar o compromisso de governar para todos, sem distinção entre seus eleitores ou não. O efeito psicológico que advém do slogan agride os que não o apoiaram e intensifica o cisma social.
Todavia, não vejo ofensa ao artigo 37, parágrafo 1º, da Constituição da República, como se tem ventilado.
Estivesse o slogan associado a um ato, programa, obra ou serviço que se estivesse a divulgar por meio da carta ou do e-mail, dúvida alguma existiria sobre a ofensa ao referido dispositivo. Todavia, a carta nada divulga, não publiciza programa, ato, obra ou serviço. Não se trata de prestação de contas. Não se trata de campanha informativa. Igualmente não houve (e espero que isso não venha a ocorrer) a inserção do slogan como padrão em documentos ou materiais. O ato é isolado.
A regra do parágrafo 1º volta-se à publicidade institucional, à divulgação de atos governamentais. Pressupõe-se que se queira dar ciência de algo realizado ou em andamento[5]. Não me parece ser o caso. Insisto que, se por um lado isso afasta a incidência parágrafo 1º, não valida a esdrúxula referência ao slogan.
Penso que não se pode, sob pena de interpretar o dispositivo para além do que ele estabelece, enquadrar ali a ilicitude. Entendo ilícita a menção ao slogan, mas antes por ofensa ao princípio da impessoalidade referido no caput do artigo 37, cujos reflexos alcançam, mas não se exaurem na norma do parágrafo 1º. Em outras palavras, o parágrafo exemplifica a aplicação do princípio da impessoalidade, mas não o encerra. Fossem idênticos os conteúdos não existiria razão para a duplicidade de normas. O mesmo ocorre, por exemplo, com o inciso II, a prescrever a obrigatoriedade de concurso público ou com o inciso XXI, que enaltece a licitação. Em todos os casos, para além de outros princípios igualmente refletidos nos citados incisos, destaca-se a impessoalidade.
A situação aqui apreciada é distinta da já apreciada pelo STF, quando do julgamento do RE 191.668, que envolvia o uso de slogan de campanhas. Relatado pelo ministro Menezes Direito, o recurso do município de Porto Alegre foi desprovido, por unanimidade, que pretendia a reforma do acórdão proferido pelo TJ-RS. O STF confirmou a inadequação da utilização do slogan, afirmando que a Constituição não autoriza que os atos de divulgação sirvam de instrumento para propaganda de quem está exercendo o cargo público e que no momento em que há possibilidade de reconhecimento ou identificação da origem pessoal ou partidária rompe-se com o princípio da impessoalidade. Pelo que se pode depreender do julgado, havia utilização maciça do slogan de campanha quando da publicidade de ações.
No tocante à suscitação de prática de ato ímprobo, no caso em questão, já foi dito que a ilicitude decorre da ofensa ao princípio da impessoalidade na sua gênese. Mas entre ser ilícito e ímprobo há uma distância, muitas vezes ignorada no ambiente forense. Testemunha-se, e há muito tempo, a vulgarização do emprego da palavra “improbidade”, empregando-a como sinônimo de ilegalidade, especialmente diante da maior plasticidade do artigo 11[6].
De fato, o caráter residual da hipótese de improbidade prevista no artigo 11 da Lei 8.429/92 favorece ainda mais o patrocínio de ações de improbidade que se fundamentam em supostas ofensas aos princípios da moralidade, eficiência, impessoalidade.
Em princípio, sem uma reflexão mais cuidadosa e necessária, seria possível (embora não correto) enquadrar boa parte das condutas administrativas no artigo 11, a depender do olhar de quem acusa. Nesse sentido, registra-se o entendimento de Mauro Roberto Gomes de Mattos, para quem há “grande preocupação com o assustador caráter aberto do caput do art. 11 da LIA[7]”. Na mesma toada, Waldo Fazzio Junior entende no caráter aberto do dispositivo “um sério risco para o intérprete”[8].
Nesta toada (e a realidade assim confirma), desejando-se questionar a conduta, que não se amolda aos artigos 9º e 10, a “solução” seria alegar ofensa a princípios. Eis o caráter residual suscitado, motivo pelo qual é preciso cautela, buscando a identificação do elemento subjetivo qualificador do ato ímprobo.
Ocorre que a violação a princípios não equivale necessariamente à improbidade[9]. Importa recordar, com o apoio de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, que “mesmo quando o ilegal seja praticado, é preciso verificar se houve culpa ou dolo, se houve um mínimo de má-fé que revele realmente a presença de um comportamento desonesto”[10].
No mesmo sentido, o posicionamento do ministro Teori Zavaski, então ministro do STJ, ao julgar o Recurso Especial 1.038.777. Na oportunidade, o ministro assentou que “a improbidade é uma ilegalidade qualificada pelo elemento subjetivo da conduta”, adicionando ainda que, “se fosse assim, qualquer ato ilegal necessariamente acarretaria a improbidade”, e não se podem confundir as coisas.
O ministro Luis Fux, à época no STJ, ao julgar o REsp 480.387/SP, também afirmou que “a ilegalidade só adquire o status de improbidade quando a conduta antijurídica fere os princípios constitucionais da Administração Pública coadjuvados pela má-fé do administrador. A improbidade administrativa, mais que um ato ilegal, deve traduzir, necessariamente, a falta de boa-fé, a desonestidade”. No mesmo trilho, no ano passado o Superior Tribunal de Justiça ratificou seu entendimento, corroborando que a má-fé é imprescindível para eivar um ato de improbidade administrativa[11].
De fato, o entendimento jurisprudencial dominante exige a demonstração do elemento subjetivo para a configuração da improbidade de que cuida o artigo 11 da Lei 8.429/92. O dolo, não a culpa, é reclamado. Ausente sua demonstração, inexiste a improbidade. A título ilustrativo, impende salientar o mencionado pelo Superior Tribunal de Justiça, no escopo do AgRg no REsp 1.397.590/CE: “Por isso mesmo, a jurisprudência do STJ considera indispensável, para a caracterização da improbidade, que a conduta do agente seja dolosa, para a tipificação das condutas descritas nos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/92 (...)”.
A abalizada doutrina administrativista, no mesmo sentido, exige a presença do dolo para fins de aplicação do artigo 11 da LIA. Uma vez mais recorre-se aos ensinamentos de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, quando da análise da Lei 8.429/92: “Nas hipóteses dos artigos 9º e 11, exige-se comprovação de dolo”[12].
Daí se extrai que a conclusão sobre a existência de ato ímprobo não se faz no automático, dissociada de elementos outros que possam elucidar a desonestidade e a má-fé, sob pena de se igualarem os conceitos de improbidade administrativa e de ilegalidade, o que não resta pertinente.
Destarte, “nem tudo que é ilegal é desonesto”[13], conforme dicção de Mauro Roberto Gomes de Mattos. A improbidade administrativa é a ilegalidade qualificada pelo elemento subjetivo da má-fé, do conluio, da desonestidade.
Logo, soa açodado, por ora, concluir pela prática de ato de improbidade, haja vista que é preciso ter em mente que a Lei 8.429/92 pretende punir o agente desonesto, e não o inábil ou o inconveniente[14]. Pode-se catalogar a conduta em tela como inábil, imprudente, irregular. Disso não parece haver dúvida. Mas o julgamento intempestivo que pode ser útil no campo da oposição política em nada favorece o interesse público.
[1] Este artigo foi escrito na terça-feira (26/2). Enquanto escrevo este artigo, vejo que o ministro se arrependeu da referência ao slogan, bem como de demandar a filmagem das crianças sem prévio consentimento dos responsáveis legais. Ainda assim, penso que vale enquadrar, em breves linhas e segundo nosso entendimento, o episódio.
[2] Art. 5º, VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.
[3] Vera Chemin, ouvida pelo Estadão, assim teria dito, apoiando-se na vedação à promoção pessoal prevista no artigo 37, parágrafo 1º, da Constituição da República, segundo o site https://educacao.estadao.com.br. O site G1 também trouxe as críticas de Luciano Godoy e Telma Vinha, respectivamente profissionais do Direito e da Educação.
[4] Não posso afirmar a origem exata da expressão, hoje constante de diversos artigos e livros. Ela, todavia, foi utilizada por Walter Ceneviva em artigo publicado na Folha de S.Paulo em 24 de junho de 2000. <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2406200004.htm>
[5] RE 201.957, RE 217.025, RE 281.012, REsp 672.726/SC, REsp 820.235, entre outros.
[6] Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições, e notadamente.
[7] MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. O limite da improbidade administrativa. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2006, p. 429.
[8] FAZZIO JUNIOR, Waldo. Improbidade administrativa e crimes de prefeitos. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 179-180.
[9] Nos estreitos contornos de artigos como este, que ademais são escritos no calor dos acontecimentos, não é possível evoluir com a profundidade desejada.
[10] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 919.
[11] AgInt no RESP 1589438/RJ, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Data de Publicação 1/6/2018.
[12] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 920.
[13] MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. O limite da improbidade administrativa. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2006, p. 441.
[14] FIGUEIREDO, Marcelo. Probidade administrativa. 5ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 42-43
Fonte: Conjur.