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A LINDB E A AUTOFAGIA DO DIREITO

Por Leonardo Avelino Duarte, Danilo Elias Pereira e Renata Facchini Miozzo



1. INTRODUÇÃO

Em 13 de dezembro de 1919, foi promulgado o Código Tributário Alemão (Reichsabgabenordnung – RAO), cujo § 4º (posteriormente renumerado como § 9º) foi assim redigido: “Na interpretação das leis fiscais deve-se ter em conta a sua finalidade, o seu significado econômico e a evolução das circunstâncias”.

O autor do anteprojeto do RAO foi ENNO BECKER, Presidente da 4ª Seção da Suprema Corte Financeira do Reich, sendo a teoria de interpretação jurídica por ele inserta na codificação legal objeto de questionamentos pelo Parlamento alemão à época, conforme relembra ALFREDO AUGUSTO BECKER:

Com intuição profética, alguns membros da Comissão Parlamentar (incumbida de apreciar o anteprojeto do RAO) temeram que a teoria de Enno Becker, uma vez convertida em lei, produzisse os mesmos resultados – incerteza e arbítrio – da escola da livre investigação do direito. Enno Becker, na condição de autor do anteprojeto e de representante do governo junto à Comissão Parlamentar, procurou afastar os temores daqueles membros, declarando-lhes expressamente que tal não aconteceria e que, graças ao § 4º do RAO de 1919, é que a sentença poderia ser “justa e sensata”.[1]

De fato, a consagração definitiva da corrente interpretativa defendida por ENNO BECKER ocorreu em pleno nazismo, com a promulgação, em 1934, da Lei de Adaptação Tributária Alemã (Steueranpassungsgesetz), preceituando em seu § 1º:

§ 1º. Normas Tributárias.

1) As leis fiscais devem ser interpretadas segundo as concepções gerais do nacional-socialismo.

2) Para isto deve-se ter em conta a opinião geral, a finalidade e significado econômico das leis tributárias e a evolução das circunstâncias.

Porém, a despeito da sustentação realizada por ENNO BECKER, no sentido de que a visão interpretativa plasmada na legislação conduziria a maior “justeza” e “sensatez” das decisões judiciais, houve, em verdade, uma maior discricionariedade e insegurança jurídica na aplicação do Código Tributário Alemão, bem como ressaltou ALFREDO AUGUSTO BECKER:

Ora, o comportamento da jurisprudência fiscal após a promulgação do RAO-1919 demonstrou que os tribunais alemães, inclusive a Corte Suprema, na aplicação da lei tributária ao caso concreto, aproveitaram-se de liberdade máxima na aplicação da lei, porque a isto lhes induzia o malfadado § 4º do RAO.[2]

Os acontecimentos retratados acima refletem bem o momento histórico vivenciado na ciência jurídica ainda na primeira metade do século passado, o qual é apresentado por HANS KELSEN, logo ao iniciar sua obra magna, como motivação à sua insistência em formular uma teoria “pura” do direito:

Porém, um relance de olhos sobre a ciência jurídica tradicional, tal como se desenvolveu no decurso dos sécs. XIX e XX, mostra claramente quão longe ela está de satisfazer à exigência da pureza. De um modo inteiramente acrítico, a jurisprudência tem-se confundido com a psicologia e a sociologia, com a ética e a teoria política. Esta confusão pode porventura explicar-se pelo fato de estas ciências se referirem a objetos que indubitavelmente têm uma estreita conexão com o Direito. Quando a Teoria Pura empreende delimitar o conhecimento do Direito em face desta disciplinas, fá-lo não por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexão, mas porque intenta evitar um sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza do seu objeto.[3]

Com efeito, percebe-se, pois, que a teoria concebida por KELSEN nunca chancelou ou legitimou, nem sequer indiretamente, a sustentação de ordens jurídicas totalitárias ou autocráticas, ao contrário do que somente poderia resultar de uma leitura precipitada e descuidada de sua obra, sobretudo quando apartada das demais, de similar notabilidade.

A despeito das pertinentes críticas à sua teoria no que concerne à interpretação das regras jurídicas, é salutar a construção kelseniana para demonstrar que ao jurista não incumbe a identificação dos valores sociais aos quais se deve conferir força normativa. Essa é a função do legislador, trata-se de política jurídica.

É a sociedade, através dos mecanismos por ela concebidos, que define quais são os valores nela existentes que devem ser revestidos de normatividade, influindo na regulação da conduta dos indivíduos e das relações sociais. Por sua vez, o juiz, cuja função também não se confunde com a do jurista (cientista jurídico), deve preocupar-se com a concretização desses preceitos normativos em casos específicos submetidos ao seu julgamento, a fim de que as situações e os conflitos surgidos recebam a solução conjecturada em abstrato pela coletividade, a quem incumbe primariamente, como dito, a estipulação dos regramentos basilares de sua própria coexistência (legislação). O ponto a se destacar do pensamento de KELSEN, portanto, é o de que há conspurcação da atividade jurisdicional ou da ciência jurídica quando se reconhece ao jurista, em cada um desses respectivos âmbitos, a possibilidade de realizar juízos de valor acerca de disposições normativas que devem ser aplicadas ao caso concreto ou objeto de estudo científico.

Insista-se que, com isso, não se propugna a instituição de ordem jurídica autorizadora de atos contrários à humanidade. Apenas se sustenta que a valoração das condutas humanas e a sua reversão em normatividade é realizada em momentos anteriores pela sociedade: a priori, com o estabelecimento de suas normas e diretrizes primordiais (esboçadas em texto constitucional ou prevalentes em razão de sua reiterada observância no protrair do tempo); a posteriori, com a especificação, em maior ou menor grau, dos comportamentos necessários à concretização daquelas disposições fundamentais.

O que se quer advertir é que, sempre que se transferem ao juiz, em concomitância, as prerrogativas de valorar condutas humanas, de imprimir-lhes normatividade e de utilizar-se de juízos axiológicos por ele próprio formulados na resolução cogente de casos concretos, a função jurisdicional, para cujo exercício encontra-se legitimado a princípio, transmuda-se em verdadeira “função antecipatória da atividade legislativa”[4], corrompendo a separação e controle dos poderes estatais, comprometendo a integridade do direito e conduzindo a arbitrariedades no interior da atividade judicante.

Nesse ponto, a experiência alemã é pródiga em ilustrar que, independentemente do regime político vigente, seja sob a égide da Constituição de Weimar ou durante o período nazista, a transferência ou o reconhecimento (expresso ou implícito) ao juiz da prerrogativa de realizar juízos de valor invariavelmente propicia maiores abusos e arbítrios em sua atuação jurisdicional.

2. A LINDB COMO REFLEXO DO ESTADO DA ARTE HERMENÊUTICO(A)

O Decreto-lei n. 4.657/42, recentemente renomeado como Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, até o início deste ano possuía somente dezenove dispositivos legais, cujo conteúdo limitava-se, de modo geral, à regulação de certos institutos jurídicos de natureza civil e processual em sentido amplo.

O traço distintivo dessa legislação (o que incitou, inclusive, a alteração de sua ementa, originariamente prevista como Lei de Introdução ao Código Civil) consistiu na disciplina também de questões de sobredireito (arts. 1º a 6º), as quais não se restringem às relações civis e processuais, endereçando-se à própria ordem jurídica como um todo.

Sob influência da corrente juspositivista predominante à época de sua edição, essas específicas disposições dedicaram-se à regulamentação e à solução de problemas advindos da contínua atividade legislativa, a qual, embora imprescindível à efetivação das normas fundamentais estabelecidas pela sociedade, constantemente enseja situações de aparente conflito entre as diversas legislações produzidas para esse fim.

Essas prescrições de sobredireito foram concebidas para o tratamento de questões internas do ordenamento jurídico, englobando aquelas relacionadas à vigência, à validade e à eficácia das leis promulgadas (arts. 1º e 2º), à sua obrigatoriedade (art. 3º), às formas de colmatação de lacunas eventualmente identificadas na disciplina de determinadas relações jurídicas (art. 4º) e aos limites normativos das legislações que entram em vigor (art. 6º).

A previsão de dispositivos legais para regulação de questões de sobredireito encontra sua alegada justificativa no fato de que, a despeito da denominação que lhes é conferida usualmente no interior da ciência jurídica, ainda se trata de matérias internas ao próprio ordenamento jurídico, em sua dimensão dinâmica:

Como a norma fundamental é o fundamento de validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem jurídica, ela constitui a unidade na pluralidade destas normas. Esta unidade também se exprime na circunstância de uma ordem jurídica poder ser descrita em proposições jurídicas que se não contradizem. Não pode naturalmente negar-se a possibilidade de os órgãos jurídicos efetivamente estabelecerem normas que entrem em conflito umas com as outras.[5]

O único preceito normativo plasmado na LINDB, até então, que excedia à regulamentação da estruturação interna da ordem jurídica corresponde ao seu art. 5º, consoante o qual: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. O dispositivo legal em apreço é apontado como exceção porque não visa à disciplina de situações decorrentes de aparentes conflitos entre atos normativos sucessivos ou de lacunas intrínsecas ao ordenamento, porém se propugna a balizar o horizonte hermenêutico do aplicador do direito, com intuito de vincular, em certa medida, o resultado final da applicatio, isto é, do processo de concretização da norma jurídica a incidir no caso fático sob julgamento.

As disposições iniciais da LINDB, em especial os arts. 4º e 5º, que se relacionam diretamente com a atividade jurisdicional, comportam variadas e apropriadas críticas, pois ainda são reflexos de paradigma filosófico do direito já superado a partir da viragem ontológico-linguística verificada, principalmente, após a segunda metade do século XX[6].

Apesar disso, é de se reconhecer o acerto na autocontenção do diploma legal, em sua versão inicial, quando contrastada com as modificações promovidas pelo atual legislador ordinário quase cem anos após a discussão iniciada no Parlamento alemão sobre as denominadas leis interpretativas (e a descoberta de seus efeitos deletérios à democracia e à independência entre os poderes estatais), ao cingir seu intento de vincular a atividade judicial apenas aos “fins sociais” e às “exigências do bem comum”. Essa limitação é resultante da compreensão do fenômeno interpretativo que predominava na comunidade jurídica à época, já superada pela hermenêutica filosófica, porém que, ao ser comparada àquela que atualmente influencia a produção legislativa e a aplicação do direito no país (da qual a Lei n. 13.655/2018 é o mais recente consectário), mostra-se dotada de maior consciência acerca dos influxos, das primazias e das insuficiências do direito positivado no que concerne à atividade jurisdicional[7].

3. O “VALOR JURÍDICO” E O CARÁTER AUTOFÁGICO DA LINDB

As modificações promovidas pela Lei n. 13.655/2018 são ilustrativas da notável involução ocorrida em relação à adequada apreensão dos elementos integradores da estrutura normativa da sociedade, a qual perpassa pelas atividades de legislação e de jurisdição, exercidas pelos membros da coletividade designados para tanto. A inadvertida profusão de múltiplas e incompatíveis compreensões paradigmáticas sobre o direito (nos mais variados aspectos) no interior da praxis jurídica, sem a necessária reflexão quanto aos graves impactos decorrentes de sua reversão em normatividade, propiciou a miscelânea de preceitos normativos atualmente verificada, que, antes de contribuir para a integridade do ordenamento jurídico, compromete-o em seus mais profundos alicerces.

 A se iniciar pelo art. 20, caput, da LINDB, o primeiro a ser introduzido pela Lei n. 13.655/2018, segundo o qual: “Nas esferas administrativas, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”. Em intelecção a contrario sensu, depreende-se que, em quaisquer das esferas acima aludidas, a autoridade pública poderá proferir decisão sustentada em “valores jurídicos abstratos”, desde que não descure as “consequências práticas da decisão”.

Sendo assim, é inarredável a formulação da seguinte indagação: o que seria um valor jurídico (abstrato)? A pretensa atribuição de caráter normativo a esse “ente” não se mostra coerente, a princípio, com a visão de ordenamento jurídico construída pelos juspositivistas em geral, supostamente adotada pela maioria da comunidade jurídica pátria, que vislumbra a estruturação do sistema jurídico em prescrições exprimíveis em proposições lógicas, no qual a prerrogativa de recolher do substrato fático social os influxos axiológicos cuja reversão em normatividade revela-se indispensável à regulação das condutas humanas é conferida ao legislador, e não ao aplicador do direito:

Kelsen opõe-se de forma decidida a esse modo de pensar no âmbito da ciência do direito. Ele não seria útil para os juristas. Ele tentaria deduzir normas da “razão”, da “natureza da coisa” ou então de um princípio extrajurídico e ignoraria que isso não pode ser levado em conta juridicamente, pois, segundo Kelsen, para os juristas só existe um tipo de obrigação a ser apreendida: as obrigações jurídicas. Todas as outras – sejam religiosas, morais, políticas ou outras obrigações – são para os juristas, enquanto juristas, não-existentes[8].

No paradigma juspositivista consolidado na primeira metade do século anterior, cuja prevalência até os dias atuais é aparentemente sustentada pela maioria da doutrina nacional, a atividade jurisdicional não resulta em emissão de juízo de realidade ou de valor, mas em pronunciamento exclusivamente jurídico (normativo)[9].

Portanto, na visão do positivismo normativista, o órgão jurisdicional pronuncia-se com base unicamente em elementos normativos (regras ou princípios), cuja relação com valores cultuados socialmente é ignorada no momento de aplicação do direito, pois alheia ao exercício da jurisdição. Sendo assim, não se compatibiliza com a compreensão positivista supostamente observada pela maior parcela da comunidade jurídica a outorga legal da prerrogativa de realização de juízos axiológicos com carga vinculante e coercitiva a agentes estatais desatrelados da função legislativa.

Seria possível, a priori, conjecturar o dispositivo legal introduzido pela Lei n. 13.655/2018 como expressão da corrente reconhecida como “jurisprudência dos valores”, consolidada a partir do pós-Segunda Guerra, contando com significativos aportes do naturalismo jurídico e da denominada “jurisprudência dos interesses”, emergida na metade final do século XIX. Todavia, a correspondência da inovação legislativa ao paradigma jusfilosófico em questão é meramente ilusória.

Afinal, seja em suas versões remotas[10] ou naquelas elaboradas em tempos mais recentes[11], os posicionamentos adeptos ou aproximados à “jurisprudência dos valores” até reconhecem a possibilidade de se proferirem julgamentos com base em vetores axiológicos, porém apenas em casos excepcionais, certamente com menor amplitude que aquela autorizada, em tese, pela Lei n. 13.655/2018, a qual condiciona o aplicador do direito unicamente à observância das consequências práticas de sua decisão.

Com efeito, há somente duas conclusões (excludentes entre si) possíveis de serem formuladas a partir dessa recente alteração legislativa: ou ela é simplesmente inaplicável, por autorizar a emissão de atos normativos não fundados em regras ou princípios jurídicos, ou se trata da positivação da autofagia do direito pátrio, pois, em vez de disposições normativas realizarem a filtragem dos valores morais, são estes (por previsão expressa da ordem jurídica) que, ao final, deverão prevalecer sobre aquelas.

Ambas as intelecções acima retratadas, embora não se permitam coexistir, são igualmente pródigas em evidenciar, a partir do citado dispositivo (e outros) trazido pela Lei n. 13.655/2018, a gravidade do paradoxo hermenêutico que acomete a comunidade jurídica nacional, o qual escancara a fragilidade do direito construído e vivenciado na atualidade: ora o texto da lei é encarado como resposta precisa e suficiente para todos os problemas que se propõe a regulamentar, ora é negligenciado ao ponto de serem desprezados os limites interpretativos por ele balizados.

Ainda não foi apercebido, com a reflexão necessária, que, embora o texto legal não se confunda com a norma jurídica a incidir na realidade fenomênica, a construção desta imprescinde daquele. Em outros dizeres, texto e norma não mantêm, entre si, relação de equivalência e tampouco de absoluta desconexão. A norma jurídica não se resume ao texto, mas nele encontra a sua programação, isto é, parcela dos limites de seu espectro de incidência, os quais se complementam com os elementos fáticos que compõem seu âmbito de aplicação:

Toda norma afeta a certos fatos do mundo social, os pressupõe, deve confirma-los ou modifica-los. Do conjunto de fatos afetados por um preceito, da parcela de realidade que haja de regular, isto é, do âmbito material, extrai o preceito legal ou “programa normativo”, que há de ser interpretado sobretudo mediante os recursos tradicionais, o âmbito normativo na qualidade de parte integrante do preceito. O âmbito normativo não é, por conseguinte, um conglomerado de fatos materiais, senão uma conexão, expressada como realmente possível, de elementos estruturais extraídos da realidade social desde a perspectiva seletiva e valorativa do programa normativo, e que habitualmente se encontram pré-formados juridicamente[12].

As antíteses consistentes na iludida convicção na infalibilidade do texto legal e no seu completo desprezo findam por contribuir similarmente para o abalo da integridade e da coerência do direito, pois estimulam atividade legislativa desconectada com a realidade que deveria normatizar, seja pela tentativa de inclusão de preceitos desprovidos de legitimidade e aptidão para ensejar seu cumprimento pelos destinatário do comando legal ou pelo deliberado propósito de se criarem dispositivos de caráter exclusivamente simbólico[13], com a função de tão somente aparentar reformulações e mudanças fáticas, porém sendo concebidas já se pressupondo a sua ineficácia.

Os reflexos desse paradoxo hermenêutico se mostram ainda mais graves quando vistos em sua repercussão na atividade jurisdicional. A desconsideração dos limites semânticos impostos pelo texto legal conduz à arbitrariedade do órgão julgador, que se vê vinculado apenas às próprias convicções para resolver conflitos de interesses em caráter definitivo e cogente. Outrossim, os arbítrios e deturpações são propiciados por outras disposições legais[14], a par das introduzidas pela Lei n. 13.655/2018, que também chancelam a utilização de valores como fundamento de decisões jurídicas (judiciais e administrativas), de modo a comprometer por completo a estabilidade do sistema jurídico.

4. CONCLUSÃO

A ilustração dos abalos à integridade do direito brasileiro hodiernamente verificados em razão da Lei n. 13.655/2018 transcendem à “introdução” dos “valores jurídicos abstratos” no ordenamento jurídico pátrio, através da atual redação conferida pela novel legislação ao art. 20 da LINDB, sendo igualmente destacáveis preceitos que, a pretexto de uma pretensa “razoabilidade”, propiciam desvirtuamentos por autoridades públicas, conferindo-lhes o exercício de funções exclusivas do legislador[15], ou que ainda revelam a insistência nas súmulas[16] como derradeiras soluções para os problemas hermenêuticos relacionados à interpretação de textos normativos[17].

É preciso compreender que tudo é aberto a interpretação. Todo texto jurídico é interpretável, mesmo os textos jurídicos de interpretação são interpretáveis. Por isso, aliás, que o pós-positivismo de FRIDERICH MÜLLER se preocupa em construir uma teoria de decisão judicial. Bem como ensina GEORGES ABBOUD:

Neste novo paradigma, a norma deixa de ser um ente abstrato, ou seja, ela passa a inexistir ante casum, uma vez que não se equipara mais ao texto legal, consequentemente, a norma passa a coconstitutiva da formulação do caso concreto. Essa nova concepção de norma jurídica demanda uma visão do direito que abandone os dualismos irrealistas tais como norma/caso e direito/realidade, bom cmo o silogismo como mecanismo de aplicação do direito.

(...)

Apenas a superação do silogismo promovida pelo pós-positivismo é que permite visualizar as súmulas vinculantes e as decisões dos tribunais superiores dotadas de efeito vinculante como textos normativos, cuja aplicação aos demais casos depende sempre de prévia interpretação. Cuida-se de observação importantíssima para trabalhar o direito constitucional e processual hodierno, invadidos pelos provimentos vinculantes, criados para a impossível missão de constituir a solução pronta e acabada aos vários casos análogos que sufocam os tribunais.

(...)

Neste sentido, Thomas Vesting estabelece que os textos normativos são incapazes de antecipar por completo a multiplicidade de suas possibilidades de uso e aplicação, logo, o texto sempre permanece incompleto ou carente de interpretação. Por essa razão, o pós-positivismo centre seu foco na teoria da decisão, ele busca conferir critérios para possibilitar interpretação judicial[18].

Entretanto, o recorte metodológico realizado possibilita uma aproximação ao cenário atualmente existente, em que o fenômeno interpretativo ainda não é visto, pela maior parcela da comunidade jurídica, como intrínseco à própria existência do indivíduo enquanto um “ser no mundo” (com a devida reflexão a respeito de todas as consequências advindas dessa compreensão), o que impossibilita a sua redução à mera atividade intelectiva sujeita apenas a estruturações lógicas e métodos rigidamente estabelecidos, através dos quais o intérprete conseguiria extrair uma norma enclausurada aprioristicamente no texto normativo interpretado.

Ademais, a Lei n. 13.655/2018 reflete a outra extremidade que permeia a visão significativamente difundida, sobretudo no senso comum teórico da comunidade jurídica, de que o texto legal, se não desprovido de relevância, certamente não é encarado como limite semântico ao intérprete, cujo empreendimento interpretativo tem sua legitimidade e conformidade com o ordenamento jurídico aferida tão somente com base na pertinência da motivação por ele apresentada para justificar a escolha entre um dos vários resultados finais supostamente atingíveis com a interpretação, ainda que amparados em “entidades” desprovidas de normatividade (como “valores jurídicos” ou “critérios de proporcionalidade”).

Entre a credulidade desenfreada na possibilidade de extração do verdadeiro sentido da norma jurídica através de métodos infalíveis, ou da prudência do aplicador do direito, e a absoluta desconsideração das limitações impostas à atividade interpretativa pelos textos normativos, faz-se necessária a compreensão integrativa e coerente do ordenamento jurídico, a fim de se preservar a sua imperatividade.

As locuções e os vocábulos do texto legal não podem ser interpretados de forma desconectada da realidade fática em que o próprio intérprete se encontra inserido no momento interpretativo. Dobras semânticas e distorções forçadas em detrimento das palavras insertas no programa da norma, com o intuito de lhes atribuir sentido diverso do que possuem no contexto social no qual são interpretadas, são posturas que comprometem intensamente a integridade do direito, cuja autoridade gradativamente diminui em favor da prevalência da vontade única do responsável pela concretização das disposições normativas na resolução de casos concretos, que os decide conforme seu exclusivo entendimento.

Em contraponto, similarmente influi no comprometimento da higidez da ordem jurídica a inclusão, através da atividade legislativa, de disposições promovedoras da autofagia do próprio ordenamento, ao autorizarem a submissão do direito a elementos externos de caráter moral, que propiciam arbitrariedades e voluntarismos no processo interpretativo. As “legislações autofágicas” constituem, de per se, inegável estímulo ao desprezo do texto normativo e dos limites dele advindos à atividade interpretativa.

Para a preservação do direito em sua ordem democrática, nas sociedade que se predispõem a mantê-lo com essa feição, é indispensável a adequada compreensão das funções e da relevância assumidas pelo texto legal (programa normativo) e pelo contexto fático afeto à sua incidência (âmbito normativo) no deslinde do processo hermenêutico, a fim de que o resultado deste traduza-se na concretização de preceito normativo que se revele legítimo e coerente diante da unidade do ordenamento jurídico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. 2a edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.

ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

BECKER, Alfredo Augusto. Carnaval tributário. 2ª ed. São Paulo: Lejus, 2004.

DIAS, Gabriel Nogueira. Positivismo jurídico e a teoria geral do direito: na obra de Hans Kelsen. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

RADBRUCH, Gustav. Filosofía del derecho. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1944.

MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. 11ª ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

STRECK, Lênio Luiz. Verdade e consenso. 5ª ed. rev., mod. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2014.

VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. 4ª ed. São Paulo: Noeses, 2010.

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[1] BECKER, Alfredo Augusto. Carnaval tributário. 2ª ed. São Paulo: Lejus, 2004. p. 132. 

[2] BECKER, Alfredo Augusto. Carnaval tributário. 2ª ed. São Paulo: Lejus, 2004. p. 132-133.  

[3] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 1-2. 

[4] BECKER, Alfredo Augusto. Carnaval tributário. 2ª ed. São Paulo: Lejus, 2004. p. 133. 

[5] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 228. 

[6] “Com efeito – e venho insistindo nisso –, se a primeira “etapa” do linguistic turn foi recepcionada (principalmente) pelas concepções analíticas do direito, proporcionando consideráveis avanços no campo da teoria do direito, o segundo “giro” (que adiciona o mundo prático à filosófica, que se pode denominar giro ontológico-linguístico ou hermeneutic turn) ainda não conseguiu seduzir suficientemente os juristas a ponto de leva-los a superar as velhas concepções que apostam, de um lado, na objetividade textual e, de outro, no protagonismo do sujeito-intérprete” (STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. 5ª ed. rev., mod. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 469-470). 

[7] “Não se consegue contornar o mal resultante dos erros judiciários, com especificar as aplicações práticas dos dispositivos. Quanto mais pródiga em minúcias a lei, quanto mais particularistas, maior o número de interrogações que levanta, de litígios que sugere. Deve procurar suprir as faltas dos Códigos, reveladas pela prática, ou corrigir as conclusões prejudiciais a que chegou a jurisprudência; porém com a mais discreta reserva, evitando perder-se nos meandros da casuística, da qual resultaria multiplicar as causas de dúvidas e, portanto, agravar a insegurança jurídica” (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 48). 

[8] DIAS, Gabriel Nogueira. Positivismo jurídico e a teoria geral do direito: na obra de Hans Kelsen. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 135. 

[9] VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. 4ª ed. São Paulo: Noeses, 2010. p. 208. 

[10]El juez, por el hecho de constituirse en servidor de la ley sin consideración a su justicia, no se convierte, a pesar de esto, en mero servidor de los fines accidentales de la arbitrariedad. Aunque él deje de estar, porque la ley lo quiere, al servicio de la justicia, permanece siempre, sin embargo, al servicio de la seguridad jurídica” (RADBRUCH, Gustav. Filosofía del derecho. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1944. p. 112). 

[11] “Um sistema jurídico que não seja socialmente eficaz em termos globais entra em colapso como sistema jurídico. Em contrapartida, um sistema jurídico pode conservar sua existência como tal, embora não possa ser moralmente justificado em termos globais. Ele só entra em colapso quando, devido à extrema injustiça, for preciso contestar o caráter jurídico e, por conseguinte, a validade jurídica de tal quantidade de normas individuais que a reserva mínima de normas necessárias à existência de um sistema jurídico deixa de existir. Cria-se um conceito adequado de direito quando três elementos são relacionados: o da legalidade conforme o ordenamento, o da eficácia social e o da correção material” (ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 110). 

[12] MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 30. 

[13] NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 29-31. 

[14] Cite-se o art. 489, § 2º, da Lei n. 13.105/2015 (Código de Processo Civil), o qual autoriza o juiz a resolver “conflito entre normas” através da “técnica da ponderação”. Trata-se de dispositivo de caráter nitidamente autofágico do próprio sistema jurídico, ao expressamente possibilitarem que preceitos legais e, até mesmo, constitucionais tenham sua aplicação nos casos concretos definida por critérios subjetivos do juiz, e não pelos elementos normativos (textuais e fáticos) que estruturam o ordenamento. 

[15] Art. 23. A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais. 

[16] Art. 30. As autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas. 

[17] “É certo que as súmulas não são respostas aos casos passados e, sim, uma pretensão de abarcamento de todas as futuras hipóteses de aplicação de determinada norma jurídica. As súmulas transformam a linguagem em um simples veículo de conceitos. São, assim, anti-hermenêuticas, porque não interrogam a origem dos significados, isto é, pelo procedimento sumular, usam-se as palavras – transformadas em verbetes – sem antes interroga-las em sua relação com as coisas de que as palavras devem tratar” (STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. 11ª ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014. p. 423). 

[18] ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. 2a edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, pág. 185-186.

 

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